30/07/08

Apeteceu-me

A Portugal

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fatua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não

Jorge de Sena

4 comentários:

Ana Camarra disse...

Triste, Triste é o poema estar actual, actualissimo, Jorge de Sena muito bom, outro que também anda na minha cabeça...

beijocas

Isabel Magalhães disse...

Bem lembrado!

clap clap clap!

Menina Idalina disse...

Um dos nossos GRANDES escritores /poetas esquecidos em Portugal. Como tudo o que é bom e de qualidade . Parece que hoje só se promove a mediocridade. E morreu no exílio . Acho que estão a reeditar a obra dele toda.

Isabel Magalhães disse...

Ainda tenho outra teoria. Os nossos (des)governos gostam muito de exéquias, de cultos post mortem; deixam-nos morrer à fome e depois de mortos é que são bons... mas mesmo assim, muitas vezes, só depois do reconhecimento vir do estrangeiro.